XEROFILIA DA CAATINGA

A Caatinga é uma formidável Mata-Branca dos Indígenas, devido à sua desfolha no período seco. Bioma exclusivamente brasileiro e o mais biodiverso do planeta, ocupa cerca de 10% do território nacional. Em outras palavras: aproximadamente 800.000 km2 de extensão. Recebe radiação solar diretamente no solo (e em afloramentos de rochas) porque a sua vegetação assim permite, uma vez que é rala (Figura 1).

Neste artigo, procurando destoar da literatura vigente, descrevemos este bioma por meio de um pequeno passeio, pelo Oeste Pernambucano, o que, a nosso ver, facilita (e em muito) a distinção dos dois tipos de vegetação que a compõem. Adicionalmente, ao longo do texto, e, principalmente, no final, destaca-se a importância deste tipo de abordagem, de interpretação da paisagem, para fins de recomendação de uso e manejo (agrícola) das terras semiáridas. Neste momento, ilustre leitor, permita-nos deixar-lhe uma pequena reflexão: se a Caatinga é o único bioma genuinamente brasileiro, por que ainda não o tornaram um Patrimônio Nacional? Há de se lembrar, contudo, que ações congêneres vem aos poucos ganhando espaço. Um bom exemplo disso é a Reserva de Vida Silvestre Tatu-Bola no distrito Jutaí (na cidade Lagoa Grande-PE) implentada para proteção do referido animal, que se enconta em via de extinção.

Figura 1. Radiação solar atravessando a rala caatinga e incidindo diretamente sobre o solo e afloramentos rochosos (seta preta) no município de Parnamirim-PE. A seta rosa destaca a Malva-branca (Sida galheirensis Ulbr.); a marrom, Favela – ou Faveleira – (Cnidoscolus phyllacanthus [M.Arg.] Pax et K.Hoffm.); a cinza, Xiquexique (Pilosocereus gounellei A. Weber); e a vermelha, Pinhão-bravo (Jatropha mollissima [Pohl] Baill).

Reitero que é mesmo um rápido passeio: de Araripina-PE a Parnamirim-PE, caminhando, obviamente, sobre a superfície paraguaçu, na depressão sertaneja, e passando por Trindade-PE, a Capital do Gesso, depois, por Ouricuri-PE, e, finalmente, chegando à Parnamirim (ou, alternativamente, via Santa Cruz-PE, passando pela capital de uva e vinho do nordeste, Lagoa Grande, e chegando a Petrolina-PE). Se nosso ilustre leitor for um profissional das Ciências do Solo (e/ou Agrônomo), como eu, certamente, há de deslumbrar-se, neste trajeto, com a fisionomia Caatinga que verá. Porque é como se estivesse atravessando dois climas muito distintos: um mais chuvoso em Araripina e outro mais seco em Parnamirim; tudo isto ocorrendo em um período de cerca de duas horas (de carro!). Contudo, isso é uma mera ilusão: pois, muito embora Araripina tenha precipitações médias anuais de aproximadamente 650 mm, 50 mm a mais que Parnamirim (com 600 mm), Köppen-Geiger classifica o clima dos dois municípios como BSh, ou seja, um semiárido quente com concentração das chuvas nos meses de janeiro, fevereiro, março e abril. Ahhhh! Mas como assim, hein? Será mesmo que 50 mm (anuais) a mais (de chuva) não fazem diferença nesta semiaridez? Some-se a estes 50 mm, os índices de precipitação de cerca de 900 mm (e as temperaturas mais amenas) que atingem alguns pontos da Chapada do Araripe – inclusive justificando em parte sua utilização agrícola na região. Agora, uma coisa temos de soblinhar: se em Araripina chove mais, há de haver um fluxo mais rápido de calor no solo, do que em Parnamirim, devendo se tomar o cuidado de manter o solo sempre coberto com alguma planta de cobertura do solo, para regular boas temperaturas para lavoura.

E o que vemos em Araripina? Uma vegetação com Tamboril (Enterolobium tibouva) e Mulungu (Erythrina velutina), dentre outras espécies da Caatinga, colonizando Latossolos Vermelho-Amarelo Distróficos ou Eutróficos, solos tipicamente muito profundos, com um horizonte A (a primeira camada mineral de solo à superfície da terra, mais fértil e escurecida pelo acúmulo da matéria orgânica do solo), por vezes, inexistente, ou pouco espesso, alertando que se está atravessando pela Caatinga hipoxerófila, que, por razões intrínsecas à sua evolução, é um ecossistema de baixa produtividade.

No trecho entre Ouricuri e Parnamirim, há uma sucessão gradual da vegetação: Tamboris passam, gradativamente, a dar lugar para parcos pés de Mandacaru (Figura 3A), Facheiro (Figura 3B), Xiquexique (Figura 3C), Macambira (Figura 3C), o que indica uma zona de transição entre a Caatinga HIPOxerófila (com menor grau de xerofitismos em suas espécies, ou, em outras palavras, com melhor distribuição de chuvas) e a Caatinga HIPERxerófila (com maior grau de xerofitismo, ou má distribuição de chuvas). A prova de que o xerofitismo da Caatinga Hiperxerófila é o do mais elevado grau, é o fato de alguns pés de Mandacaru crescerem sobre o telhado de algumas casas do Sertão, sem solo e sem água (Figura 4). É importante salientar neste momento que a diferença entre as duas caatingas não tem a ver com o volume das chuvas, mas com a sua distribuição: em Araripina, uma distribuição mais regular, e em Parnamirim, mais irregular.

Figura 3. Vegetação Caatinga (hiperxerófila) identificada em Parnamirim-PE. A: Mandacaru (Cereus jamacaru DC). B: O Mandacaru está destacado pela seta preta; o Facheiro (P. pachycladus Ritter), pela seta vermelha. C: Macambira (Bromelia laciniosa Mart. Ex Schult) está destacada pela seta vermelha; e Xiquexique, ainda muito jovem, destacado pela seta rosa.

Figura 4. Pés de Mandacaru (ver seta marrom) crescendo sobre o telhado em Parnamirim-PE.

Após a pequena zona de transição, simplesmente ficará maravilhado, nosso ilustre leitor: inicialmente verá uma cobertura-viva de Malva-branca (Figura 1B) alimentando ovinos e caprinos e escondendo em seu interior a Macambira (Figura 3C); continuando por essa região, principalmente pela Caatinga mais preservada, avistará exuberantes populações de Mandacaru (antigamente utilizado para produção de ripas, nas bioconstruções de taipa) e de Facheiro sombreando Xiquexiques (empregados atualmente no aumento da durabilidade das bioconstruções de terra crua) (Figura 5A e Figura 6D); bem ao lado destas xerófitas, há de se esbarrar com Catingueiras (e/ou Umbuzeiro e/ou Imburana-de-cheiro) (Figura 5B e F), escondendo pés de Palmatória (Figura 5C), Urtiga (Figura 5C), Quipá (Figura 5D), Coroa-de-Frade (Figura 5G) e Caruá (esta última era – e ainda é! – utilizada na produção de cordas para confecção de redes e bornás) (Figura 5G). E neste momento, ilustre leitor, preste muita atenção para não pisar nestas plantas; se o fizer, vai lhe custar boas dores e coceiras nas pernas!

Figura 5. Espécies da Caatinga Hiperxerófila identificadas em Parnamirim-PE. A: O Facheiro está destacado pela seta vermelha; o Xiquexique, pela seta rosa; e o Mandacaru, pela preta. B: O Umbuzeiro está destacado pela seta vermelha; e Imburana-de-cheiro (Amburana cearensis [Allemão] A.C.Sm.), pela seta preta. C: A seta vermelha indica a Palmatória (Tacinga palmadora [Britton & Rose] N.P.Taylor); e a rosa, Urtiga (Urtica dioica L.). D: A seta rosa indica Quipá (T. inamoena [K.Schum.] N.P.Taylon & Stuppy.); e a seta preta, Caruá (Neoglaziovia variegata [Arruda] Mez). E: Mandacaru. F: Catingueira (Poincianella pyramidalis [Tul] L.P.Quirroz). G: Coroa-de-Frade (Melocactus zehntneri [Britton & Rose] Luetzelburg). H: Favela (ou Faveleira) – ver seta marrom.

Salientar que a abundância (e/ou a exuberância) da Faveleira, do Xiquexique e Facheiro é um indicativo da ocorrência da Caatinga Hiperxerófila. Por outro lado, a sua raridade ou, até mesmo, a sua ausência, associada com o aumento relativo de Tamboril, Mulungu e Ouricuri, indica a dominância da Caatinga Hipoxerófila.

A Caatinga Hiperxerófila (aqui tratada!) se encontra assentada sobre uma camada de cascalho (pedras com diâmetro entre 2 mm e 2 cm) e calhaus (pedras cujo diâmetro está compreendido entre 2 e 20 cm), que pode ultrapassar uns 10 cm (Figura 6A). Ou seja, um pavimento desértico, situado na zona intermediária da pendente, sobrejacente a Luvissolos Crômicos. E por isso mesmo, árvores, como Baraúna (e Facheiro), tombam facilmente (Figura 6B-C); não à toa: o pavimento, o tipo da vegetação e a seca sinalizam que estamos diante de solos rasos a pouco profundos e férteis. Na medida em que se vai percorrendo a paisagem (em outras palavras, a morfologia externa do solo) em direção à baixada (ou “baixio”, segundo a população local), o pavimento desértico finda (Figura 7A), formidáveis Juazeiros surgem (Figura 7A), e mais para baixo, Alagadiços (Figura 7B) são encontrados, indicando que neste ponto da paisagem poderá se construir açudes, pois a drenagem, deste lugar, é impedida por afloramentos rochosos, que estão em diferentes graus de intemperização (ou seja, um contato lítico fragmentário), e talvez por isso, é que permitem a emergência de plantas, tais como Pinhão-bravo (Figura 7C), Faveleira (Figura 7D) e Xiquexique (Figura 7E), as quais, por sua vez, contribuem para o avanço do intemperismo físico sobre eles.

Figura 6. Características morfológicas de um indivíduo solo na Caatinga Hiperxerófila, de Parnamirim-PE. A: A seta rosa mostra o Pavimento Desértico; a vermelha, a Urtiga. B: Facheiro recentemente tombado. C: Baraúna (Schinopsis brasiliensis Engl.) tombado. D: Madeira de Mandacaru.

Figura 7. Na baixada, já sem Pavimento Desértico, se observa, dentre outras plantas, Juazeiros (Ziziphus joazeiro Mart.) (A) e Alagadiços (Mimosa Bimucronata Kunth), bem como a presença de açudes (B). Na pendente oposta, começam a aparecer afloramentos rochosos, sendo colonizados por Pinhão-bravo (C), Faveleira (D) e Xiquexique (E).

Do mesmo jeito que as precipitações locais são muito concentradas, podendo chover 70% de toda chuva do período chuvoso (de apenas 4 meses) em um único mês, removendo argila, silte e areia para baixada, e produzindo um pavimento desértico, a vegetação local também é muito densa, ou seja, em uma área de aproximadamente 70 m2, bem preservada, se consegue ver quase todas as espécies vegetais supracitadas com apenas um giro de 360 ° C.

A sensação térmica, entre as duas caatingas, é também um fator muito interessante: enquanto se precisa de um cobertor para passar uma noite na Caatinga Hipoxerófila (Araripina, por exemplo), principalmente se estiver sobre a rede, na Hiperxerófila (Parnamirim), a sua rede já lhe é suficiente como cobertor. Como se vê, as temperaturas são mais baixas na Hipoxerófila e mais elevadas na Hiperxerófila, o que também pode ser, por outro lado, facilmente deduzido pelo contraste vegetal observado entre as duas caatingas.

E qual é a importância dessa informação para o Engenheiro Agrônomo? Ela sinaliza as condições (ambientais) de cultivo (ou seja: clima seco, forte insolação e alta evapotranspiração, bem como a presença de solos com pequena profundidade efetiva, com impedimentos físicos ao sistema radicular e suscetibilidade à erosão e à compactação) sobre as quais as lavouras serão (ou estão) inseridas e, ao mesmo tempo, sugere o tipo de manejo que deveria ser aplicado ao agrossistema: calagem e adubacão, insumos  de sistema – cobertura do solo, raiz, diversidade biológica do solo, mínimo revolvimento do solo e matéria orgânica do solo –, irrigação e drenagem, dentre outros manejos. Para obtenção do calcário poderia se recorrer às jasitas presentes na cidade de Trindade-PE e no Povoado de Jacaré-PE. Ficou interessado pela região? Venha conhecer o Araripe Pernambucano!

Autores: Carlos Vergara & Francisco Dionísio de Lima Granja

Citação: VERGARA. C & GRANJA F. D. L. Xerofilia da Caatinga. Redigiragro (https://redigiragro.vivaldi.net), 2023.

Literatura

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Rodrigues, F. W. A., Rodrigues, L. A., Rodrigues, C. A., & BRAGA, D. (2017). Uso etnobotânico e conservação de espécies nativas do bioma caatinga: como esta relação é percebida por uma comunidade rural do semiárido pernambucano. In Congresso Internacional da Diversidade do Semiárido. Campina Grande PB.

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